segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Reflexões à luz (sanguínea) da lua




Ontem à noite, do quintal da minha casa, pude acompanhar o duplo espetáculo astronômico que foi o eclipse total da lua e a lua de sangue. A ótima visibilidade nos favoreceu ver a lua sumir e ressurgir imensa, bela, sanguínea. Acontecimento igual a esse somente se repetirá em 2033, dizem os astrônomos.
Nas cidades grandes, muitos moradores não tiveram a mesma sorte que eu e meus conterrâneos: de ter diante dos olhos um céu límpido e livre de edifícios e do excesso de luzes. E, por esse motivo, muitos não puderam contemplar, dos seus próprios quintais, terraços ou jardins, o espetáculo gratuito que o céu nos presenteou na noite de 27 de setembro de 2015.
Coisas que uma cidade de 22 mil habitantes ainda pode proporcionar aos seus moradores: um céu "observável". Até quando? Até se encontrar repleta de luzes e de imensos edifícios. Quando isso acontecerá com Pio XII? Não sei. Ninguém sabe.
Na semana que passou, eu e meus alunos andamos conversando sobre o futuro de Pio XII. Nesse diálogo - muito proveitoso, diga-se de passagem - procurei instigá-los a refletir sobre a nossa realidade, para que possam escrever bons artigos de opinião e participar da olimpíada maranhense de língua portuguesa.
Assistimos um vídeo sobre a cidade de Pio XII em 1991. Um dos principais contrastes observados foi a calmaria das ruas e do trânsito, bem diferente de como é hoje. Ao saber que vinte e quatro anos atrás, nossa cidade sequer tinha uma praça e a energia elétrica costumava faltar com frequência, foram poucos os jovens que desejaram ter uma máquina do tempo e fazer uma visita àquela época.
E olha que estamos falando da última década do século XX, os anos 90. E como seria Pio XII na época da sua fundação, final da década de 50? Em entrevista gravada, anos atrás, para um trabalho acadêmico sobre a origem de Pio XII, um dos nossos mais antigos habitantes, o senhor Antonio  Manoel de Lucena conta que "nesse tempo tinha muito sezão, hoje é malária que chama, naquela época era sezão". Diz mais:
"A gente não podia andar muito nessa época não, porque era muito violento aqui; (...) era uma violência danada, prendiam as pessoas e amarravam, era uma coisa nojenta, (...) de 62 até 70 era uma coisa sem limite, (...) nessa época tinha muita festa, muito mais do que tem hoje, (...) e não tinha segurança, aí o povo se matava, (...) nessa época tinha muito cabaré, pra todo lado tinha cabaré e naqueles cabarés tinha festa direto, (...) a gente só escutava à noite era o tiroteio (...) não era nem pra matar, era para se amostrar, (...) essa maconhada que tem hoje, não tinha não, mas tinha uma cachaçada danada, (...) aqueles homens que tinham uma mente melhor não saiam não, com medo da violência, (...) hoje a gente acha que aqui tá desarrumado, mas não tá não, de 59 até 70 aqui era um destroço" (Antonio Manoel de Lucena). Tempos brabos, meu senhor.
Sabemos que apesar de pequena, nossa cidade hoje começa a sofrer com problemas como a violência e o tráfico e o consumo de drogas. Assim, é mais que necessária a reflexão coletiva sobre o futuro que almejamos, como esta propiciada pelo trabalho da olimpíada de língua portuguesa. Sem visões apocalípticas ou falsos saudosismos. É importante valorizarmos a nossa liberdade de pensamento e de expressão e a experiência de cultivá-la. Não esqueçamos que o município de Pio XII foi fundado às vésperas da ditadura e passou metade de sua história imerso no obscurantismo imposto pelo regime militar.
Portanto, carpe diem: que possamos hoje contemplar o eclipse lunar e essa magnífica lua vermelha sem deixar de pensar em como iremos contemplá-los de novo em 2033. Se não em nossos lares, mas nos espaços públicos de uma comunidade vivível.    
Pio XII, Maranhão, 28/09/2015.






segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Quando asfaltar uma rua desmascara preconceitos






Há sete meses, a Prefeitura de Pio XII asfaltou um pequeno trecho da Rua do Sossego, entre a BR e a Rua Alferes Sudário. Esse trecho da Rua do Sossego tinha como antiga denominação “Rua dos Pretos”. E, mesmo sendo uma das mais antigas do município de Pio XII e de estar localizada tanto perto da BR 316 como perto do centro da cidade, a rua nunca tinha sido asfaltada antes. Assim, não é de se estranhar que essa “novidade” tenha sido comemorada por muitos moradores e pelos representantes da administração municipal. É válida a comemoração. No entanto, é necessário refletirmos sobre as prováveis razões de um logradouro tão antigo ter ficado “esquecido” por décadas pelas autoridades municipais. No meu entender, esse “esquecimento” é a expressão inequívoca do preconceito racial institucionalizado.
O logradouro, repetimos, informalmente denominado “Rua dos Pretos”, é um daqueles tantos casos de batismos espontâneos de ruas. Assim, o nome pode representar uma homenagem aos seus primeiros moradores, que, em sua maioria, eram negros. Vista por outro ângulo, infelizmente, a suposta homenagem poderia simbolizar a transformação da rua em gueto, como se a intenção fosse a de alertar a um transeunte incauto: “cuidado, estás a pisar em território de ‘pretos’; logo, coisas de ‘pretos’ aí encontrarás”. Acredito que foi o preconceito enraizado no espírito de prefeitos e secretários municipais o que os tornou insensíveis às necessidades da rua e de seus moradores, entre as quais a necessidade de asfalto. Afinal, as ruas principais e adjacentes que perfazem o núcleo central da cidade de Pio XII, entre elas a antiga “Rua dos Pretos”, existem desde 1977, ano da mudança e constituição da nova sede do município. E, no entanto, somente em 2015 a rua recebeu asfalto pela primeira vez.
Porém, independentemente de como se analise a questão, é inegável que as pessoas que moram na rua têm todo o direito de se alegrar, depois de longos anos de espera. Fiz ontem uma visita à rua e ouvi o comentário de uma moradora, que destacou que uma grande diferença que ora se observa é, por exemplo, nos dias de chuva: antes do asfalto, as pessoas caminhavam com extremo cuidado sobre o barro escorregadio. Hoje esse risco não existe mais.
Mesmo sabendo que o prefeito Paulo Veloso não fez mais que a sua obrigação, não podemos deixar de elogiá-lo. Seja em valores econômicos ou quanto à sua extensão, a obra não é grandiosa. O que deve ser ressaltado é a atitude republicana da administração municipal em mostrar que esse pequeno trecho da Rua do Sossego não é um gueto ou uma senzala urbana e que os moradores da rua merecem ser tratados com respeito.
A história deixa as suas lições. A principal é a de que a política municipal precisa desenvolver ações que visem a superação do “esquecimento” a que foram relegados os negros em Pio XII.
Eu iria mais longe e afixaria uma placa na entrada da rua com os dizeres: “Este trecho da Rua do Sossego, batizado informalmente de ‘Rua dos Pretos’ e que tem entre os seus primeros moradores cidadãos afrodescendentes, só foi asfaltado pela primeira vez em fevereiro de 2015. Fica aqui o nosso agradecimento pela obra e, ao mesmo tempo, o nosso protesto pelos longos anos de esquecimento”.
Pio XII, Maranhão, 21 de setembro de 2015.